domingo, 28 de junho de 2015

Um ator sem amor

Eu nunca vou conseguir ver o Daniel Radcliffe sem pensar no Harry Potter. Nunca. Nem se ele se transformar no novo Jack Sparrow. Isso porque quando alguém cresce interpretando um personagem é o personagem que cresce nele, os trejeitos não mudam, se constroem. O que não faz de Radcliffe um ator tão ruim, só mais um ator marcado.
Quando comecei a ver “Será que?” a marca dele se reafirmou. O personagem é o mesmo e Radcliffe não consegue emplacar um bom romance nem com Cho, nem com Gina, nem com Chantry. Sabe aqueles filmes que quando o protagonista se revela apaixonado pela protagonista você sente um nó na garganta? Então, isso não acontece quando ele é o Radcliffe. E é exatamente por isso que ele combinou tanto com o Wallace de "Será que?".
Na trama Wallace está sozinho desde que a namorada o traiu há um ano. Ele está chateado? Bravo? Se sentindo traído? Não, ele só seguiu em frente sem esboço de sentimento algum. Um dia ele conhece Chantry (Zoe Kazan) e eles viram amigos. E ele continua querendo ser só amigo dela mesmo quando Chantry revela que namora há cinco anos com o bambambam das galáxiasONU, que cozinha e é um cara super bacana. Obviamente Wallace entra naquela Friend Zone não tão Friend assim, mas que todo mundo finge que é só Friend pra não causar intriga cedo demais.
Área com Spoiler. Pare aqui se não quiser saber como a coisa termina.
O que normalmente acontece nesses filmes?
1. O namorado não é tão perfeito, pisa na bola e Chantry fica com Wallace
2. Wallace e Chantry têm um caso,ela se arrepende, a amizade nunca mais é a mesma e na última cena os dois se reencontram após anos, sentem o constrangimento no ar e vão embora
(Poderia ter “3. Wallace sofre, esquece Chantry e segue a vida”, mas aí não teria motivo para fazer esse filme porque já existe e chama 500 Dias Com Ela.)
O que as duas opções acima têm em comum fora estarem no roteiro de 98% das comédias românticas? São drásticas. Sempre tem um rompimento dramático para algum lado. Mas foi exatamente aí que a falta de potencial para demonstrações amorosas do Radcliffe encontrou seu sentido na vida. O namorado da Chantry continua sendo perfeito, o Wallace não tenta nada com ela e mesmo após um momento de coragem para dizer tudo o que sente ele volta a ser o protagonista sem sal e deixa a garota seguir a vida. E ela casa com o namorado perfeito? Não. Ela termina com ele e fica com o Wallace? Sim. Por que, se o namorado não fez nada, era perfeito e o Wallace sem sal? Porque ela quis.
(Eu, sinceramente, torci pelo namorado perfeito. Ele era bem mais legal, seu único defeito era não ter matado o Voldemort.)
Mas felizmente -para algumas pessoas- infelizmente -para outras- a vida está cheia de rompimentos não dramáticos e inexplicáveis, que estão aí só para fazer todo mundo se perguntar: por que?
Portanto, “Será que?” é um filme tão sem sal quanto um Radcliffe apaixonado, mas conseguiu escapar do óbvio e ficar mais real, então vale às 1h40 perdidas se você não tiver nenhum Harry Potter para assistir.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Jurassic World: a variação tecnológica da receita

Um homem que não tem com que gastar dinheiro cria um parque de diversões inovador. No lugar de montanhas-russas ele tem dinossauros. Entre os visitantes há familiares menores de idade e o escolhido para analisar as atrações segue a linha Indiana Jones. Há também alguém ambicioso, querendo ganhar vantagem naquilo tudo e, claro, um dinossauro cheio de dentes tocando o terror.
Resumidamente, estamos falando de Jurrasic Park, 1993. Não, péra. Estamos falando de Jurassic World, 2015.
No fim, a receita é a mesma, o que muda é a tecnologia. Obviamente seria difícil desbancar o clássico de Steven Spielberg de 1993. Ninguém conseguiu, nem mesmo as sequências O Mundo Perdido (1997), que receberia no máximo uma classificação ‘boa’, e Jurassic Park 3 (2001), que beira a classificação ‘sessão da tarde’.
Eu vi o filme de 1993 pela primeira vez em um VHS. Zero glamour, TV pequena, som mono, tudo analógico. Mas desde o momento em que vi meu primeiro dinossauro em CGI -já que antes meu imaginário pré-histórico era formado pela animação Em Busca do Vale Encantado (1988)- eu nunca mais enxerguei um dinossauro que não fosse de Spielberg.
Jurrassic Park não serviu só para fazer o espectador acreditar na existência desses animais, mas deu até aos pesquisadores algo para se instigar. Até 1993 ninguém imaginava como um dinossauro andava, com o que soava, os movimentos que fazia. Foi a equipe de Spielberg que deu isso ao mundo e o mundo agradeceu tornando os dinossauros de Spielberg referências fora da tela.
Como superar um feito desses?
Repetindo-o.
Jurassic World, que chegou aos cinemas na última semana, recria a mesma história do primeiro longa, com a ressalva de que o parque finalmente abriu e abriu 20 anos depois. Claro que a produção não poderia repetir a receita do T-Rex destruidor, que depois de tanto tempo ficou menor e menos assustador que muito arranha-céu por aí. Eles precisavam de novidade, algo maior, que despertasse o medo e a curiosidade da geração de hoje. Então surgiu a Indominus Rex, a versão mais assustadora do T-Rex com requintes genéticos. Filha da mistura em laboratório de tudo o que é grande, mortal e cruel, ela mata por esporte e não só enxerga movimento como sente vibrações térmicas (Chupa, T-Rex!).
E para os fãs um pouco mais apaixonados e que acabaram tendo tanto medo no passado que desenvolveram amor pelos velociraptores, o que é o meu caso, o filme é um deleite. A proposta de que pode haver respeito entre um humano e um dinossauro dá aquela empatia ao longa que a gente sentiu quando viu o Tricerátops doente no primeiro filme, quando você acha que pode SIM ter um dinossauro de estimação, ainda que ele queira te comer.
Jurassic World é a receita transgênica de Jurassic Park que ficou tão boa que já se tornou a maior estreia da história de Hollywood! A resposta nas salas de exibição é o resultado de vinte anos de evolução tecnológica do cinema, que permitiu ao espectador voltar a 1993 sem precisar sair de 2015. Na trama, passaram duas décadas desde o fechamento do primeiro parque e já se vão 20 anos desde a estreia do primeiro filme. O tempo que separa as produções foi muito bem utilizado para o sucesso delas e para que, mais uma vez, recriar dinossauros fizesse sentido.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Um mito, um divisor de águas e o poder do boca a boca

2014 não foi um ano de muitas publicações... Tá, não foi ano de publicação nenhuma. Mas ainda assim alguns trabalhos foram desenvolvidos. Esse foi um texto que fiz por encomenda para a revista digital LIBRE!. Um pouco tarde, mas, para fãs de Tarantino, antes hoje do que nunca.
Eu tinha sete anos e pouco lembro sobre o que prende a atenção de uma criança com essa idade, mas posso garantir que uma estreia de cinema – a menos que fosse a de O Rei Leão (Disney, 1994) –não seria a opção mais tentadora. No entanto, eu me lembro de Pulp Fiction – Tempos de Violência.
Claro que hoje eu não poderia contar com clareza como foi que tudo aconteceu, mas é por isso que a criança de sete anos de 1994 encontra a mulher de 27 em 2014 para completar essas lacunas. Afinal, são vinte anos de um filme que não só mudou a história do cinema, como instituiu o mito Quentin Tarantino.
Pulp Fiction foi o segundo longa do diretor americano, que estreou nas telonas com Cães de Aluguel (1992). O primeiro filme já havia causado um reboliço em Hollywood e colocado o nome de Tarantino em evidência, mas as seis indicações ao Oscar (em que levou a estatueta de Melhor Roteiro Original) e a Palma de Ouro recebida em Cannes em 1994 o fizeram fincar a bandeira territorialista no letreiro de Hollywood e seu nome na calçada da fama.
Com Tempos de Violência Tarantino fez o que antes ninguém havia feito: estabeleceu o cinema independente no cartel cinematográfico. O longa custou $8 milhões para ser produzido e rendeu $200 milhões nas bilheterias mundiais. Foi um escândalo! E não é maneira de falar. A banalização da violência no filme virou assunto no mundo todo e o boca a boca foi o maior responsável por lotar as salas de exibição. Ainda hoje há quem não aceite o sangue derramado desordenadamente por Tarantino, que só perde o posto de diretor sanguinário para Martin Scorsese, que tem até uma cor própria, “o vermelho Scorsese”. Pulp Fiction teve até a repercussão comparada a outro clássico marcado pela violência: Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971), e os contextos e épocas eram bem diferentes.
Obviamente que com sete anos eu não era apta a ver o filme no cinema, mas lembro perfeitamente da silhueta de Uma Thurman e John Travolta dançando em uma chamada na TV aberta anos depois, quando o longa ia ser exibido. “O filme que chocou o mundo”, “o sucesso de bilheteria”, “o fenômeno mundial” eram as manchetes que incitavam as pessoas a assistir.
Eu não gostei do filme, sinceramente, no entanto nunca mais esqueci a cena da dança. Mas não virem a página! Eu tinha apenas oito, nove anos. É de se compreender que uma criança não se sinta afetada pela sedução tarantinesca a primeira vista. Ou a segunda. Ou até mesmo 20 anos depois. Sejamos claros, salvo os últimos grandes longas do diretor -Bastardos Inglórios (2009) e Django Livre (2012)-, que tiveram um roteiro um pouco mais linear, Tarantino não é lá um dos contadores de histórias mais fáceis de engolir. Tomando como princípio Pulp Fiction, eu sempre imaginei a tortura de quem teve que criar uma sinopse para o filme:
“Uma dupla de assassinos profissionais, que trabalha para um poderoso gângster, que se vê envolvido em uma situação constrangedora por perseguir um homem que lhe passou a perna, que tinha um relógio importante, que nada tem a ver com a esposa do gângster que é convidada para sair com um dos assassinos profissionais, mas não devia se envolver com drogas e tem um casal que apareceu na primeira cena e... Quem são eles mesmo?”
A chamada na TV deveria se resumir no máximo em “se metem em uma grande confusão!”, ainda que confusão explique melhor do que as linhas acima.
Portanto, é preciso paciência e bagagem cultural para assistir Tarantino, e eu não falo sobre seus diálogos de dez minutos ininterruptos sobre hambúrgueres em Pulp Fiction, falo sobre a falta de linearidade e a profundidade dos seus roteiros malucos que começam sem pé nem cabeça e terminam prendendo escandalosamente a nossa atenção.
Tempos de Violência é uma aula de cinema que vai além do Mise-en-scène. As referências à outros filmes e personalidades que fizeram parte da história da Sétima Arte e de outras artes são incontáveis: Marilyn Monroe, Elvis Presley, Martin & Lewis, Amos and Andy, Mamie Van Doren todos eles em apenas em uma cena. Até Ringo Starr, ainda que alguns o considerem o Beatles menos importante, teve seu nome lembrado.
Quentin Tarantino é um apaixonado pelo cinema, o dos outros e o dele. É possível cruzar takes de Pulp Fiction com Kill Bill (2003, 2004), Cães de Aluguel, A prova de Morte (2007), Jackie Brown (1997) e provavelmente com todos os outros filmes do diretor. No fundo, ele gosta de criar próprias referências mais do que se referir a outros.
E é por isso que não se assiste a filmes de Tarantino, você estuda-os. Porque para gostar de um longa desses requer-se um conhecimento prévio de outros tantos filmes que, sem essa bagagem, provavelmente o roteiro que começa sem pé nem cabeça iria terminar perdendo o resto do corpo e ser apenas um escândalo, sem sinopses.
Em 2014 Pulp Fiction comemora 20 anos como lenda do cinema, um divisor de águas que rompeu os rótulos que não permitiam que um filme pop fosse visto como clássico, que deu identidade ao cinema independente e criou o estilo Tarantino de fazer cinema: uma assinatura, uma marca mundial. Ainda hoje a película permeia centenas de listas de melhores filmes da história e provavelmente não perderá muitos lugares nos próximos 20 anos. Um viva ao cinema, a Pulp Fiction e ao gênero Tarantino.
**Texto encomendado para a revista digital LIBRE! em setembro de 2014.